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Apresentação
PALESTRA INAUGURAL - LABAN 2018
Sistema Laban como Prática de Liberdade
Regina Miranda, MSc. CMA
É um prazer e uma honra estar aqui no Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro para, como Coordenadora Geral da conferência LABAN 2018 – Sistema Laban como Prática de Liberdade, receber vocês e trocar experiências durante estes dias. O tema da conferência foi decidido a partir da perspectiva do mesmo nome que desenvolvi e tenho apresentado internacionalmente nos últimos anos. O conselho artístico-científico da conferência achou que seria pertinente promover e ampliar esta discussão também no Brasil.
Esta perspectiva tem sido atravessada por muitas vidas e visões, como as de Nelson Mandela (1918-2013) e Paulo Freire (1921-1997), por exemplo, e suas práticas foram estruturadas a partir das teorias de movimento fundadoras, como as de Rudolf Laban (1879-1958) e Irmgard Bartenieff (1900-1981), por pensamentos contemporâneos advindos da filosofia, da psicanálise e do Campo Labaniano, no qual me incluo. Crucial para o que tenho desenvolvido é a definição de liberdade oferecida pelo filósofo Michel Foucault (1980), para quem a liberdade não deve ser entendida como uma "coisa", nem mesmo como um conceito abstrato, mas como uma prática que não pode ser representada, possuída, distribuída, ou assegurada através de garantias constitucionais. Ela precisa ser praticada. Assim, uma sociedade que opera em liberdade seria comprometida com práticas de liberdade permanentes, tanto no nível individual quanto no coletivo. A ideia seria tentar erigir uma sociedade utópica, na qual as relações seriam transparentes, respeitosas e solidárias? Talvez mas, principalmente porque para existir a liberdade precisa ser exercitada.
Em princípio, o que se pretende exercitar numa conferência é a troca produtiva e generosa de saberes, que alimenta nossas vidas e nossos diversos campos de trabalho. No entanto, penso que é nossa maneira de estar presente, as trocas afetivas informais que acontecem nos intervalos, a solidariedade com as circunstâncias de cada um(a) e a abertura para as diferenças que poderão nos redefinir e tornar este encontro - único. De todas essas tramas vão surgir novas ideias e novas formas de estar e estar com. Pessoalmente, cada vez mais, abro mais espaço para que a ocasião de estar junto se constitua como um campo de indagações, afetos e incertezas e não apenas como um lugar de transmissão ou troca de saberes. Creio ter ganho essa liberdade em meus mais de 40 anos de prática no Campo Labaniano.
Assim, o que irei compartilhar com vocês é o meu estar em vir-a-ser e alguns pontos de vista de uma artista-pesquisadora[1] que, seja ao dirigir uma instituição, um projeto, uma coreografia, ou uma peça teatral, se identifica principalmente como coreógrafa, já que são as articulações entre corpo, espaço, tempo, formas e as relações entre corpos e os diversos ambientes que regem a minha maneira de estar e minha insistentemente inconstante visão de mundo.
Como mencionado anteriormente, a ideia do Sistema Laban como uma prática de liberdade ganhou maior potência para mim a partir de estudos do pensamento de Foucault, principalmente o recorte que indica a liberdade como uma prática. Para mim, fez imediatamente sentido! Aliás, acho que para quem trabalha no campo do movimento, faz sentido que a liberdade precise ser exercitada e que, neste processo, se redefina. Há países em que o direito à liberdade faz parte da constituição, mas não adianta quando na prática ela não existe. Ou se pratica a liberdade, ou ela não acontece. Para que ela exista, é necessário que seja cotidianamente exercitada. Caso contrário, torna-se um conceito abstrato e inatingível, um pouco como o conceito de - felicidade. Afinal, quem não quer ser feliz? Quem não deseja a liberdade? Mas ambos, se permanecem enquanto conceitos sem encarnação geram a sensação de estar sempre para além de nosso alcance. Mas, ao traze-los para a prática cotidiana...passam a fazer sentido. E em Laban, o conceito é sempre conceito encarnado.
Em suas inúmeras entrevistas, tanto como presidente da Africa do Sul e como líder ativista anti-apartheid político, Nelson Mandela apontava a diferença entre se libertar de alguma coisa restritiva, seja ela concreta como a prisão em que viveu grande parte de sua vida, ou de preconceitos que restringem a visão e dividem a sociedade. Enquanto viver em liberdade estaria mais atrelado a uma situação, ser livre implicaria em viver de uma maneira que respeite e melhore a liberdade dos outros. Em outras palavras, implica em se praticar a liberdade com responsabilidade social. A partir desta visão, Mandela acreditava que a força da paixão por ideais humanitários, aliada a uma educação cidadã, eram ferramentas poderosas para se mudar o mundo. Entendendo que as pessoas não poderiam encontrar nenhuma paixão, nenhum proposito maior de vida caso se conformassem com uma vida inferior àquela que eram capazes de viver, o próprio Mandela tornou-se um exemplo vivo de inconformismo com o que era estabelecido social e politicamente. Sua prática de liberdade encontrava ocasiões de celebração e generosidade em momentos diversos e inusitados. Ainda me emociona lembrar seu sorriso e sua dança luminosa e elegante à saída de sua longa prisão.
Também o grande educador Brasileiro Paulo Freire chamava constantemente atenção para o pouco interesse atual em se compreender a pedagogia como uma prática cívica, política e moral, ou seja, como uma prática de liberdade. Considerado no mundo inteiro como um dos fundadores da pedagogia crítica, ele desenvolveu a sua própria vida como uma campanha educativa. Na verdade, com o legado de Freire, acho incrível e uma declaração de incompetência que não sejamos o país com a melhor educação do mundo! Aliás, no momento atual brasileiro, quando se tem a percepção de que diversas instituições sofrem o temor de vir a ser dominadas por ideologias conservadoras, a sua visão de educação como uma força para ampliar a imaginação e expandir a ação democrática precisa permanecer ainda mais presente entre nós.
Já no campo artístico, o conceito de “liberdade” parece possuir um valor nuclear e inquestionável. Afinal, o fundamento das artes é a liberdade de expressão. Mas para que o conceito não se esvazie, para pensarmos o campo artístico como lugar potente de liberdade de expressão, torna-se necessário refletir sobre o que entendemos como liberdade. A coreógrafa Pina Bausch, por exemplo, informalmente definiu liberdade em dança como o ato de se fazer novas perguntas e responder em movimento de uma forma única, que não poderia ser expressa de outra maneira ou por um outro meio. Penso que no campo das artes cênicas, para que a liberdade seja praticada torna-se necessário formular trabalhos artísticos complexos, que tenham e possam gerar transformação e múltiplos sentidos. Afinal, quando se usa fórmulas massificadas de sucesso, ou quando se prioriza corpos padronizados e relações de gênero normativas, ha um terreno a ser revisto entre a adoção do conceito e a prática de liberdade, que é intrinsicamente arriscada.
Mas não vamos nos apressar e, menos ainda, julgar. Vamos pensar junt@s: é possivel que liberdade artística possa ser uma capacidade praticada por uma pessoa, que começa alguma coisa nova para ela mesma? Se o novo individual, mesmo que em uma configuração normativa, introduz uma marca de singularidade, ele traz para a existência algo que não existia antes? Todo trabalho de arte que não é repetitivo de fórmulas conhecidas, todo trabalho experimental traz o novo? E o que dizer de trabalhos artísticos que entram no lugar da repetição de fórmulas porque desejam ser aceitos pelo senso comum? Percebe-se aqui um atrito porque o senso comum não quer o novo, mas a repetição daquilo que já conhece. O senso comum, por definição, (re)conhece. Seria então restritivo da liberdade criativa?
Me lembro que quando criei a Divina Comédia (alguns aqui viram e provavelmente muitos sabem da existência desse trabalho...) em 1991, o trabalho eletrizou a cidade e se tornou um marco nas artes cênicas do Rio de Janeiro. Foi a única vez, fora do carnaval, que vi um trabalho artístico ser reconhecido por toda a cidade. Nos lugares mais diversos, pessoas de todas as idades e realidades socioeconômicas se levantavam e aplaudiam quando entrávamos num recinto e, até hoje, muitas nos agradeciam pela experiência única. Foi um trabalho que realmente permeou e foi amado pela nossa cidade. Pois bem, “a Divina” era um trabalho itinerante: o público, como múltiplos Dantes, fazia sua peregrinação através das várias instalações que compunham o que indicamos como Inferno, Purgatório e Paraiso, situados respectivamente nos subsolos, jardins, salas de exposição e laje do Museu de Arte Moderna –MAM RJ. Com a interação do publico, o espetáculo jamais era o mesmo e jamais seria o mesmo, ainda que o fizéssemos até hoje.
Com o sucesso, logo em seguida fui convidada para criar outro trabalho itinerante. Embora honrada, senti que se aceitasse o convite eu iria ser permanentemente convidada para fazer outros trabalhos nesse formato. Temi perder a liberdade de escolher a forma que me parecesse adequada a cada criação e acabei por negar o trabalho. A questão para mim é que faz parte do meu espaço de liberdade criativa definir os espaços em que precisam ocorrer e quais relações corpo-espaciais precisam ser exploradas. Essas decisões são tomadas pela investigação cuidadosa de quem tem se dedicado a apreciar as complexas relações corpo-espaciais por toda a vida. Para mim, mas não necessariamente para tod@s, repetir fórmulas de sucesso não é tão instigante quanto definir a cada vez o espaço e as relações cênicas.
Em 2013, fui convidada como uma das 5 conferencistas internacionais para apresentar Corpo-Espaço na celebração dos 100 anos da primeira escola Laban em Monte Veritá, na Suíça. O belo encontro, que reunia várias gerações, foi organizado pela CMA Nunzia Tirelli exatamente no lugar em que Laban introduziu nas artes cênicas uma cultura do corpo livre entrelaçado ao cultivo e preservação do meio ambiente. Uma cultura de celebração, em que o corpo artístico era potência de vida. A ideia de corpo como “o espelho”, que simultaneamente reflete e abrange os infinitos movimentos circulares do universo, apontava para um sentimento de pertencimento e conexão com a natureza, nutrido pela linguagem e pela visão de uma cultura de celebração. Esta cultura Labaniana de celebração e construção de conexões tem sido para mim uma forma de desenhar mapas que favoreçam a liberdade e a vida. Compartilho com vocês um pequeno texto da grande dançarina alemã Mary Wigman (1966), no qual ela reflete sobre este período na Escola Laban de Monte Veritá:
“Éramos jovens e aquelas semanas de verão sem compromisso, juntos, imersos na beleza da paisagem cheia de sol, deixava os nossos membros livres e abria as portas espirituais da nossa vivacidade. Andávamos juntos pela floresta e dançávamos até tarde da noite nos platôs incandescentes e nos vales verdejantes. Tudo era celebração, uma celebração sem fim”.
Amig@s, o número de vezes que nos meus 18 anos de vida no exterior ouvi, de forma negativa, que “no Brasil, tudo vira festa” foi enorme e, na maior parte das vezes, dito por brasileir@s como nós. Entendo que o sentido da palavra festa seja usado como esquecimento da realidade e/ou falta de responsabilidade, mas assim mesmo faço sempre questão de responder “Sim! Não é um saber maravilhoso?” Acho mesmo que aqui no Brasil de alguma forma temos esse saber impregnado e poderíamos aprender a fazer melhor uso dele como potência criativa. O Carnaval sabe, o futebol também... Talvez tenhamos herdado este saber...não sei... minha sensação é que o herdamos dos povos africanos que, mesmo como escravos em nosso país, conseguiram preservar a celebração como valor e encontrar caminhos criativos, por exemplo, com a capoeira, simultaneamente uma dança, arte marcial, expressão de resistência em uma roda cantada que se configura como festa. Nós temos esse saber gravado no corpo e, a meu ver, não podemos perde-lo.
Ultimamente, tenho sentido o Brasil mais triste, as pessoas mais cansadas, menos esperançosas... Além da necessária resistência cultural, penso que é necessário fundamentar nossas ações na paixão, trazer a alegria de volta e promover a nossa cultura de celebração. Sem esperança, nenhuma relação consegue florescer e, se pensarmos em nosso país, se cada um/a não tiver o mínimo de confiança de que é possível mudar as coisas, de que cada voz é importante e transformadora, se cada pessoa não acreditar nisso e não exercer esse poder em si e no seu entorno pouco vai mudar mesmo e restará apenas o lugar do espanto e da reação, que não é suficiente para efetuar transformação.
O que descobri e tenho retraçado no Sistema Laban são mapas de liberdade, modos de se escapar a definições e restrições normativas, caminhos para que se possa estar no mundo de forma engajada e transformadora. Tive a sorte de chegar muito jovem em NY e, meio pelas mãos do destino já que como bailarina nunca tinha ouvido falar em Laban, tive uma aula de movimento diferente de tudo que eu conhecia. E essa aula tinha – linguagem e uma linguagem de movimento! Era exatamente o que eu tinha ido buscar em NY: uma linguagem que pudesse me libertar de cânones anteriores e alicerçar minhas pesquisas coreográficas!
Para me dedicar totalmente a esse novo conhecimento, fui estudar no Dance Notation Bureau com Irmgard Bartenieff, mestra no Programa de Formação Profissional. Mais tarde, após me formar como CMA (Certified Movement Analyst), em 1975 me tornei sua assistente e uma das primeiras pessoas a organizar seus manuscritos para seu futuro livro. Um privilégio! E esta linda senhora, que na época tinha setenta e poucos anos, sabia exercer e promover a liberdade em todas as suas aulas: sua atitude pessoal e sua forma de ensinar, que nos deixava longos tempos de investigação independente, eram libertadores para nós. De vez em quando, ela sentava observando, abaixava a cabeça, fechava os olhos e dormia um pouquinho. E nós continuávamos a trabalhar, em silêncio, cuidadosamente. De repente, ela abria os olhos e continuava: “...nessa última rotação de ombro que você fez, talvez você pudesse pensar no desenho espacial e não apenas na articulação?” E a gente não tinha a menor ideia de como ela poderia ter percebido esse tipo de detalhe!
Uma das grandes qualidades de Irmgard era saber ouvir a tod@s com respeito, mesmo jovens como eu que, desde aquela época, tinha um pensamento espiralado e afeito a transversalidades e multiplicidades, o que naquela época não era culturalmente muito valorizado nos Estados Unidos. Em seu acolhimento das diferenças, Irmgard abria espaço para que eu me sentisse autorizada a questionar e fazer relações entre conceitos. Em seguida, ela me solicitava a encarnação do conceito, porque acreditava que a resposta em movimento era a resposta singular. Fazia isso repetindo uma espécie de mantra, que usava em diversas variações: “Fique preparad@ para a mudança. A mudança está aqui para ficar”. Ah!... Então o valor não estava mais na objetividade e na permanência, não estava mais no certo, naquilo que podia ser comprovado?”. Para mim, foi uma revolução. E quando consegui encarnar o conceito de mudança, revestido de valor positivo, estavam abertas as portas do vir-a-ser e a minha forma de estar no mundo passou a ser um ser/estar em vir-a-ser.
Desde aquela primeira e grande imersão em Laban e Bartenieff, ficou claro que a liberdade era vital para mim. Já neguei trabalhos, que me dariam estabilidade, porque eles iriam me tirar a liberdade. Já saí de relações estáveis, porque elas restringiam a minha liberdade. A verdade é que só me sinto viva em liberdade. Mas liberdade com conexão. Por isso, o desejo de nutrir e praticar essa liberdade em mim e em/com outr@s.
Esse desejo tem alimentado toda a minha pesquisa e modos de criar, expostos em inúmeros trabalhos artísticos e em alguns livros. Penso que ela tenha tomado corpo especialmente na vivência com a companhia que fundei, inicialmente chamada AtoresBailarinos e que, em 1985, passou a se chamar Companhia Regina Miranda & AtoresBailarinos. Tenho a sorte e alegria de ter um núcleo de pessoas que trabalha comigo praticamente desde o início da companhia, então essa pesquisa aconteceu através do diálogo com seus/nossos corpos. Não fosse o desejo, a curiosidade e a disponibilidade emocional, física e criativa dess@s artistas, talvez Body-Space Connections, BSC, apresentado pela primeira vez na conferência Motus Humanus (2002) em Massachussetts, nem tivesse acontecido. Mais tarde, no Brasil, BSC tomou o nome de Conexões Corpo-Espaço, ou simplesmente Corpo-Espaço, título do meu livro de 2008.
Em si uma prática de liberdade, Corpo-Espaço se constitui como uma atualização das teorias Labanianas fundamentais a partir de uma perspectiva de pensamento sistêmico. É uma extensão dentro/fora do Campo Labaniano, que se volta para as entrelinhas, para as fendas que promovem processos de transformação originais e ganham formas mutáveis quando não se separa corpo de espaço. Assinalo que chamo de Campo Labaniano o território que inclui as teorias originais de Laban & Bartenieff acrescida dos aportes trazidos por profissionais, tais como Bonnie Bainbridge Cohen, Peggy Hackney, Martha Eddy, Jody Arnhold, Barbara Adrian e outr@s que, como eu, temos encontrado no Sistema um mapa aberto de grande riqueza para desenvolver nossas contribuições e, eventualmente, criar novos territórios.
Quando comecei a associar as teorias de Laban e Bartenieff à Topologia, novos conceitos se formaram, novas representações geométricas foram incluídas e novas práticas e modos de criar e estimular a criatividade foram e continuam a se desenvolver em Corpo-Espaço. Dois conceitos tem sido fundamentais em nossa abordagem do Sistema como pratica de liberdade: o conceito de “being-becoming” (ser/tornar-se), e o conceito de “intensidade”. Ao entender o corpo como um processo aberto, criativo, de auto atualização e auto inovação que produz singularidades e individuações, Being-becoming não visa chegar a um estado de estabilidade. A ideia se nutre de um processo permanente de renovação. Já o conceito de “intensidade”, como trabalhado em Corpo-Espaço, acabou por desdobrar os conceitos de kinesfera e dinamosfera de Laban em múltiplas esferas de comunicação interno-externa, que organizei em cinco “Esferas de Intensidade”, desde a mais íntima à mais cósmica e seus vazamentos e inter-relações. Além disso, a proposição da Sociocoreologia como um possível campo de estudo e prática de análise engajada de processos coletivos é um território que vem gradualmente se configurando a partir de Corpo-Espaço.
Essas práticas e territórios de investigação são abordagens plásticas e descentralizadas, que buscam ser elegantemente “desorganizadas”. Na cena, talvez o exemplo mais contundente dessa abordagem tenha sido “Desordem”(1992). Neste trabalho, criado a partir de um livro de Robert Musil chamado “O Homem sem Qualidades”, a construção espacial e a trama cênico-coreográfica se desenvolviam de forma totalmente acêntrica. Busquei criar uma espécie de tapeçaria cênica, algo semelhante a um quadro de Bosch[2], cujo elenco de seres humanos, animais e criaturas fantásticas parecem criar uma dança entre o céu e o inferno. Com a mesma intenção, mas sem reproduzir qualquer de seus quadros, desenhei um espaço vertical estruturado pelos elevadores e plataformas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, usados em vários níveis de altura, sobre e entre os quais atuantes transitavam com linhas de ação independentes e descentralizadas, com alguns momentos de intercessão. Sem protagonistas, era possivel (mas improvável) escolher seguir a linha de ação de qualquer personagem, mas o que se propunha era uma nova forma de ver mais ancorada nos cruzamentos e reviramentos das linhas que formam o tecido cênico, uma apreensão mais contemplativa dos ritmos dos encontros, desvios e desencontros que aconteciam e se dissipavam e o impacto das ondas de transformação que mudavam as relações. Como em Musil, penso que a vida se apresenta assim, desconexa. Quem estabelece conexões e cria sentidos somos nós e, no caso da “Desordem”, a plateia. Esta, na verdade, ficou um tanto desconcertada pela geometria cênica pouco usual que apresentei, já instigada pela Topologia, que eu havia descoberto pouco tempo antes.
Em sua investigação do movimento Laban trabalhou com a geometria euclidiana. Ela deu suporte à sua pesquisa durante a maior parte de sua vida. Mas, de repente, assim do nada e sem explicações, Laban passou a incluir em seus textos representações, tais como a Banda de Moebius, que apontavam para outras geometrias. Aconteceu um salto, uma emergência, uma estranheza, que acendeu minha curiosidade e que, como uma fresta, me estimulou questões que me levaram à Topologia: - Que intensidades atravessam o corpo? Como elas transformam o corpo? Como o corpo as transmite? Como a própria multiplicidade corporal pode se metamorfosear sem que o corpo se desintegre? Que representações poderiam ser adequadas para um corpo em processo de transformação?
Passei a incorporar no trabalho da Companhia o conceito de becoming e certas configurações topológicas, como o Toros e a Garrafa de Klein, passaram a motivar práticas cênicas de transformação e recriação de múltiplos selfs. Para tanto, desenvolvi também alguns protocolos de experimentação, todos com uma mesma regra simples: a cada experiência cênica, encontrar outras coisas para dizer e procurar dize-las bem em voz, escrita e movimento. Esses protocolos incluem: processos de atualização, intertextualidade, recontextualização, criação de conexões, identificação de padrões, desdobramentos e reconfigurações. Eles dão suporte a perguntas, tais como: A mesma frase diz a mesma coisas se proferida de outra maneira? Em outro ambiente? O que muda? Como muda? Com esta mudança, que outros sentidos podem ser criados? Buscamos múltiplas respostas para essas perguntas e também conhecer e explorar perguntas e respostas afins de outros pesquisadores e pesquisadoras. Que outros textos podem trazer maior complexidade e trânsito de sentidos? Como multiplicar a performance, mudar sua forma, suas perspectivas? Oferecer, descobrir e compartilhar diversas perspectivas é algo que adoro praticar.
Agora, por exemplo: estamos há algum tempo em uma mesma perspectiva espacial, que me tem no palco, em um lugar de luz e foco, enquanto vocês estão junt@s na penumbra da plateia. Que tal mudarmos isso? Neste momento, eu gostaria de convidar quem quiser a fazer uma franca mudança espacial. Quem desejar pode, por exemplo, vir aqui para o palco, ou mudar de lugar na plateia. Se preferir pode também mudar de perspectiva a partir do próprio lugar onde se encontra. Olhar quem está de um lado da plateia, ver quem está do outro, quem esta mais longe, mais perto... Você gostaria de tocar alguém que você viu? Que tal andar e respirar? Ficar sentado cansa, não é verdade? Será que você gostaria de tentar encontrar com uma pessoa ou outra? Se ao focar em si você perceber que este encontro está de bom tamanho pra você, você tem a alternativa de sair do teatro e ir embora, sem que eu me considere desrespeitada. Na verdade, tentem não me ter no seu foco principal: eu vou dando algumas orientações, fazendo perguntas e vamos criando esse novo momento junt@s.
- O que o seu corpo sente vontade de fazer agora? Você sabe que recuperação seu corpo precisa agora? Há espaço para isso.
- Caso você encontre com alguém, o quanto seria possivel se aproximar? Talvez abraçar? Contar alguma coisa íntima, alguma coisa importante que tenha sentido pra você, que possa mudar o sentido de estar ao lado de quem você está?
- O que pode ser mudado para que você mude sua perspectiva e a de quem você está perto? Procure chegar mais perto de alguém, ir para mais longe.
- Tente mudar a perspectiva espacial desse encontro, mudando de nível por exemplo, enquanto esse espaço como um todos mantém vivo.
- Não ha necessidade de me ouvir atentamente. Melhor sentir os ritmos, as gradações e deixa a minha voz entrar como qualquer outra. As vozes de vocês estão preenchendo o espaço e essas vozes são tão importantes quanto a minha.
Assim...muito bom...criamos um espaço corpo-sonoro espacialmente vibrante. Observem e ouçam esse som, essa música... Tentem mudar, como num coral sem maestro. Será que é possivel? Ouçam, olhem a voz, olhem a música, ouçam os corpos. Essa música é linda e complexa. Continuem e para manter esse tecido corpo-vocal vivo, tentem mudar novamente a perspectiva espacial. Ninguém precisa parar para me ouvir, eu sou mais uma voz entre as de vocês. Este é um espaço de transformação, a conferência é um espaço de transformação. Eu sei que é difícil não fechar, mas proponho que deixemos esta construção em aberto. Poderíamos continuar, mudar, continuar por mais tempo, mas a conferência precisa continuar. Então até breve! Obrigada a tod@s!
Referências Bibliográficas
FOUCAULT, Michel. Power / Knowledge: Selected Interviews and other writings, 19721977. New York: Pantheon Books, 1980
LABAN, Rudolf. Le space dynamique. Tradução de Elisabeth Schwartz-Remy. Bruxelas: Ed. Contredanse, 2003.
_____________. The mastery of movement. Londres: Macdonald and Evans Limited, 1971. (1a edição, 1950).
_____________. The language of movement: a guidebook to choreutics, Annotated and edited by Liza Ullmann. London:Macdonald and Evans Limited, Londres, 1974. (1a edição, 1966).
MIRANDA, Regina. Corpo-Espaço: Aspectos de uma geo-filosofia do corpo em movimento. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008
WIGMAN, Mary. The Language of Dance. London: Macdonald and Evans Limited, Londres, 1966
[2] Hyeronimus Bosch (1450-1550), pintor holandês cujos quadros apocalípticos são célebres por seus detalhes e simbolismos
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