DIREITO À CIDADE: ANÁLISE JURÍDICA PARA ALÉM DA PERSPECTIVA DE CLASSE

Publicado em 27/07/2022 - ISBN: 978-65-5941-759-9

Título do Trabalho
DIREITO À CIDADE: ANÁLISE JURÍDICA PARA ALÉM DA PERSPECTIVA DE CLASSE
Autores
  • Jussara Romero Sanches
Modalidade
Resumo expandido
Área temática
GT 06 – Direito à cidade e o combate ao racismo, ao machismo, à LGBTfobia e a outras formas de opressão
Data de Publicação
27/07/2022
País da Publicação
Brasil
Idioma da Publicação
Português
Página do Trabalho
https://www.even3.com.br/anais/xicbdu2022/480291-direito-a-cidade--analise-juridica-para-alem-da-perspectiva-de-classe
ISBN
978-65-5941-759-9
Palavras-Chave
Direito à cidade; Interseccionalidade; Gênero; Etnia; Classe
Resumo
1 INTRODUÇÃO Em 1968, diante das intensas transformações urbanas pelas quais Paris estava passando, o filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre cunhou o conceito de Direito à Cidade, no livro homônimo. O autor demonstrou como a cidade, enquanto local de troca, de vivência da vida urbana, deu lugar à espaços comprados e vendidos, local de segregação e exclusão, reproduzindo as desigualdades econômicas da sociedade capitalista, pois se transforma na medida das transformações do modo de produção, nas relações cidade-campo e de propriedade. Diversas são as análises sobre o direito à cidade desde a sua concepção inicial, até a popularização do conceito no âmbito acadêmico, mas o que se tem como consenso em diferentes estudos é sua origem marcadamente marxista e revolucionária. Para Lefebvre, a concretização do direito à cidade se inscreve na perspectiva da revolução sob a hegemonia da classe operária, se concretizando em uma nova cidade, construída em novas bases, em novas escalas e em outras condições, em uma outra sociedade. No entanto, apesar da origem do conceito estar intimamente atrelada às desigualdades de classe, o que se observa na sociedade contemporânea é que, além das desigualdades econômicas, outras dimensões da desigualdade marcam o processo de construção do espaço urbano, em especial as tensões de gênero e de classe, de forma sobrepostas. Diante deste contexto, por meio de revisão bibliográfica, o presente artigo tem como objetivo compreender como o direito à cidade é delineado a partir de uma compreensão jurídica e verificar se a sua dimensão jurídica alcança os diferentes âmbitos da desigualdade (classe, gênero e etnia) na sua formulação. 2 DIREITO À CIDADE: UM RESGATE CONCEITUAL Frente à intensificação dos conflitos em torno da construção do espaço urbano, principalmente nas últimas décadas, o conceito de direito à cidade se torna uma importante categoria social de análise das relações sociais urbanas, ao ponto de ser colocado como um “importante ponto de contato entre grupos organizados ao redor do mundo” (TAVOLARI, 2016, p. 94). Conforme aponta demonstra Bianca Tavolari (2016), o ponto de partida para as diferentes reconstruções sobre o sentido do direito à cidade é o livro Direito à Cidade, de Henri Lefebvre, publicado em 1968. Os diferentes caminhos teóricos desenvolvidos por Manuel Castells e David Harvey, dentro da sociologia urbana moderna, reconhecem o pioneirismo de Lefebvre, apesar de seguirem caminhos distintos quanto à definição e à atribuição de sentido ao direito à cidade. No Brasil a autora firma que houve “uma combinação de concepções pouco conciliáveis: uma amálgama entre o direito à cidade, de Lefebvre, e a noção de luta por acesso a equipamentos de consumo coletivo por parte de movimentos sociais urbanos, desenvolvida por Castells” (TAVOLARI, 2016, 98). Além da concepção político filosófica, de resgate da vida urbana, de uma centralidade renovada e do uso pleno da cidade como valor de uso e não de troca, ou seja, uma ruptura com organização social capitalista (TRINDADE, 2012), subjacente à construção de Henri Lefebvre (2001) ou à concepção de reivindicação política classista, “como um direito de reconstruir e recriar a cidade como um corpo político socialista com uma imagem totalmente distinta: erradique a pobreza e a desigualdade social e cure as feridas da desastrosa degradação ambiental” (HARVEY, 2014, 247). É possível acrescentar outra perspectiva de análise a respeito do direito à cidade, a jurídica. O direito é compreendido como um instrumento de mediação social, uma vez que as estratégias sociais não são suficientes para alcançar a justiça social. Assim, mostra-se necessário avançar no sentido de instrumentalizar mecanismos jurídicos que permitam a exigibilidade dos direitos (OSÓRIO, 2006, p. 194). Assim, a legislação brasileira, em especial a partir da aprovação do Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257 de 2001, representa um significativo avanço para a materialização do direito à cidade em termos jurídicos (TRINDADE, 2012, p. 144). Para Thiago Aparecido Trindade (2012) o direito à cidade é um direito social, sendo definido legalmente pelo princípio da função social propriedade. Ao analisar o contexto social da urbanização brasileira, o autor conclui que, diante de um processo de urbanização excludente, o “direito à cidade significa usufruir das vantagens, dos serviços e oportunidades oferecidas pelas boas localidades do sistema urbano”. Subvertendo e contrariando a lógica predominante até então de construção do espaço urbano, que tinha como objetivo atender aos interesses econômicos do mercado privado de terras. Assim, para o autor, o direito à cidade não pode ser compreendido como direito à moradia, é muito mais amplo e complexo, “pois considera a localização do indivíduo no sistema urbano em seu conjunto e a possibilidade de acesso às melhores localizações da cidade”, e isso apenas é possível com a incorporação do princípio da função social da propriedade, com a intenção de regular o uso da propriedade e do solo urbano (TRINDADE, 2012, p. 149). Nelson Saule Júnior (2019) também analisa o direito à cidade a partir de uma perspectiva jurídica, buscando compreender os aspectos legais do conceito. Ao realizar uma retomada histórica o autor demonstra como os fundamentos das discussões a respeito do espaço urbano no Brasil, na época da redemocratização e da atuação do Movimento Nacional pela Reforma Urbana, estavam intimamente ligados à concepção de direito urbanos. Estes sim, conectados claramente com o cumprimento da função social da propriedade, como pretensão de vida urbana digna, que condiciona o direito de propriedade ao interesse social no uso dos imóveis urbanos (SAULE JUNIOR, 2019, 146). Nelson Saule Júnior (2019, p. 146) aponta que o processo de regulação da política urbana, desde a Constituição de 1988 até a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, passou por um processo de evolução e influência das discussões realizadas no âmbito internacional. Como resultado dessas influências o direito à cidade no Estatuto da Cidade incorporou uma dimensão de sustentabilidade, qualificando-o como direito às cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações, nos termos do inciso I, do art. 2º, da Lei nº 10.257 de 2001. No cenário internacional, o direito à cidade ganha visibilidade com a Carta Mundial do Direito à Cidade, elaborada durante o II Fórum Social Mundial, em 2002. E durante a mobilização e articulações internacionais que envolveram diversos atores, durante o processo da Conferência das Nações Unidades do Habitat III, destacam-se as ações da Plataforma Global do Direito à Cidade, que tinha como objetivo inserir a visão do direito à cidade na Nova Agenda Urbana (SAULE JÚNIOR, 2019, p. 148). Na perspectiva na Plataforma Global do Direito à Cidade, ele é definido, a partir das palavras de Nelson Saule Júnior (2019, p. 148), como um direito que tem “natureza de um direito humano coletivo/difuso conjugado com as funções sociais da cidade e da gestão democrática das cidades que permitem a integralidade dos direitos humanos em um determinado território com base nas normas internacionais dos direitos humanos”. O art. 13 da Nova Agenda Urbana apresenta a incorporação de grande parte das ideias apresentadas acima e aponta como elementos do direito à cidade: a função social e ecológica do território, a participação democrática, igualdade de gênero e etária, e proteção dos ecossistemas. Nelson Saule Júnior, (2019, p. 150) conclui apontando a necessidade de se incorporar a compreensão de que a efetiva realização do direito à cidade “exige respeito, proteção e cumprimento de todos os direitos humanos sem exceção”, bem como os direitos ligados especificamente à cidade: “as funções sociais da cidade, a luta contra a discriminação socioespacial, os espaços públicos de qualidade, e as conexões sustentáveis e inclusivas entre rural e urbano”. 3. DIMENSÃO JURÍDICA E INTERSECCIONALIDADE O direito à cidade, conforme demonstrado acima, foi desenvolvido dentro do contexto da questão de classe, uma vez que a construção do espaço urbano assume, nas sociedades capitalistas um caráter mercantil, ou seja, a terra urbana é transformada em mercadoria e utilizada como uma engrenagem a serviço do capital. No entanto, no Brasil, a desigualdade de classe não é a única a perpassar o processo de construção do espaço urbano. Luana Xavier Pinto Coelho e Lorena Melgaço (2019, p. 137), afirmam que “a perspectiva de classe ou do sistema econômico se mostrou insuficiente para compreender as diversas formas de opressão das quais o próprio sistema se beneficia e que dão forma ao espaço urbano. Assim, torna-se necessário que outras categorias de desigualdade, para além da de classe, sejam incorporadas à discussão sobre o direito a cidade. Lígia Maria Silva Melo de Casimiro (2017, p. 9) afirma que as cidades foram idealizadas e erguidas dentro de uma perspectiva, “em que a presença da mulher era ignorada, e portanto, desconsidera no tocante às escolhas sobre que forma e função os espaços teriam e como seriam acessados”. Para que o direito à cidade seja assegurado às mulheres, ele deve ser construído levando em consideração a presença feminina, permitindo a sua participação nos espaços decisórios sobre o desenho, o uso e a ocupação da cidade (CASIMIRO, 2017, p. 9). O autor aponta que as discussões de gênero colocam a necessidade de aprofundar o debate relativo ao direito à cidade em relação a discriminação de gênero e a forma como o espaço urbano é vivido, experienciado e reproduzido por mulheres e pela população LGBTQIA+ (COELHO; MELGAÇO, 2019, p. 137). Claudio Oliveira de Carvalho e Gilson Santiago Macedo Junior (2019, p. 195), afirmam que as cidades se fecham ao redor da heterossexualidade diante da ausência de políticas públicas que objetivem a proteção e a acesso aos direitos da população LGBTI+, escancarando a invisibilidade dessa população e fazendo da cidade um local de medo, insegurança. Assim, “a negação dos espaços públicos à população LGBTI+ reforça a ideia de um dualismo entre a cidade legal e a cidade ilegal, em que as figuras que transgridem as normas de gênero e de sexualidade devem ser execradas”. Da mesma forma como as mulheres, a população LGBTQIA+ e os negros são excluídas e invisibilizadas do processo de construção do espaço urbano do processo de construção do espaço urbano. Assim, se faz necessário compreender o papel da raça nas dinâmicas de desenvolvimento do espaço urbano e a presença da população não-branca em espaços considerados como ilegais pelo Estado (COELHO; MELGAÇO, 2019, p. 137). Evidencia-se, portanto, a necessidade de se compreender o direito à cidade a partir de uma perspectiva que não se restrinja à desigualdade de classe, mas que englobe diferentes dimensões da desigualdade, em especial, as desigualdades de gênero e de raça, que também perpassam os processos de exclusão na construção do espaço urbano. 4. CONCLUSÃO OU CONSIDERAÇÕES FINAIS A cidade é um espaço no qual as contradições da sociedade capitalista assumem especial relevância. Os processos de segregação e exclusão são escancarados e os processos de segregação necessitam ser compreendidos em todas as suas dimensões. Neste aspecto o conceito de direito à cidade tem sua origem intrinsecamente relacionada às discussões sobre as desigualdade econômicas e/ou de classe que pautam os processo de construção do espaço urbano. No entanto, conforme é possível observar, na sociedade contemporânea as correlações de forças que impactam nos processos urbanos não se restringem à dimensão de classe. Para compreender os processos de exclusão e de segregação, para compreender o papel desempenhado pelo direito à cidade na proteção e garantia de direitos de todos, é necessário que se compreenda quem são todos os destinatários e os titulares do direito à cidade que devem participar do processo de construção do espaço urbano, em todas as suas particularidades. Não se trata tão somente do proletário excluído economicamente dos benefícios do urbano ou do processo de construção do urbano, verifica-se que há outros mecanismos de exclusão que também não permitem que o espaço urbano seja pensado, construído e vivido por mulheres, lésbicas, gays, travestis, bissexuais, transexuais e negros. Assim, para a efetivação do direito à cidade, é necessária a compreensão das formas de interação entre diferentes dimensões da desigualdade como classe, gênero, raça e sexualidade, pois cada um desses marcadores sociais influenciam e pautam a forma como os indivíduos participam ou não do processo de construção dos espaços urbanos. REFERÊNCIAS CASIMIRO, Lígia Maria Silva Melo de. As mulheres e o direito à cidade: um grande desafio no século XXI. In: Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU. Direito à cidade: uma visão por gênero. São Paulo: IBDU, 2017. CARVALHO, Claudio Oliveira de; MACEDO JÚNIOR, Gilson Santiago. “Ainda vão me matar na rua”: direito à cidade, violência contra LGBTI+ e heterocisnormatividade. In: Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU. Direito à cidade: uma visão por gênero. São Paulo: IBDU, 2017. COELHO, Luana Xavier Pinto; MELGAÇO, Lorena. Raça, espaço e direito: reflexões para uma agenda decolonial no Direito Urbanístico. In: SOUZA JUNIOR e outros (org.). Introdução crítica ao direito urbanístico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. Trad. Jeferson Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2014. LEFEBVRE, Henri. Direito à cidade. Trad. Rubens Eduardo de Frias. São Paulo: Centauro, 2001. OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à Cidade como direito humano coletivo. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (org.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. SAULE JUNIOR, Nelson. A cidade como um bem comum, pilar emergente do direito à cidade. In: SOUZA JUNIOR e outros (org.). Introdução crítica ao direito urbanístico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. TAVOLARI, Bianca. Direito à cidade: uma trajetória conceitual. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n° 104, p. 93-109, mar. 2016. TRINDADE, Thiago Aparecido. Direitos e cidadania: reflexões sobre o direito à cidade. Lua Nova. São Paulo, nº 87, p. 139
Título do Evento
XI Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico
Cidade do Evento
Salvador
Título dos Anais do Evento
Anais do XI Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico
Nome da Editora
Even3
Meio de Divulgação
Meio Digital

Como citar

SANCHES, Jussara Romero. DIREITO À CIDADE: ANÁLISE JURÍDICA PARA ALÉM DA PERSPECTIVA DE CLASSE.. In: Anais do XI Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico. Anais...Salvador(BA) UCSal, 2021. Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/xicbdu2022/480291-DIREITO-A-CIDADE--ANALISE-JURIDICA-PARA-ALEM-DA-PERSPECTIVA-DE-CLASSE. Acesso em: 30/04/2025

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