AINDA ESTAMOS AQUI
É com grande alegria que o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e a
Universidade de Brasília (UnB) anunciam a realização do XII Congresso Brasileiro de
Direito Urbanístico. O evento acontecerá de forma híbrida, com programação
majoritariamente presencial na Faculdade de Direito da UnB, nos dias 21, 22 e 23 de
outubro de 2025, com o tema “Justiça Socioterritorial: redistribuição, reparação,
reconhecimento.” Desde sua primeira edição, em 2001, o CBDU tem se consolidado
como o principal espaço de encontro e formulação crítica sobre o direito urbanístico no
Brasil, reunindo profissionais, acadêmicos, estudantes, gestores públicos e
movimentos sociais.
Ao longo das últimas duas décadas, o Congresso esteve atento às inflexões da
conjuntura nacional e aos principais embates em torno da construção de uma política
urbana democrática e emancipadora, tornando-se um espelho das transformações
sociais, institucionais e normativas do país. A “justiça urbana” foi pela primeira vez o
tema central do CBDU em 2013, em São Paulo, impulsionado pelas mobilizações das
Jornadas de Junho e pelas lutas por transporte público e democracia nas cidades. Nos
doze anos que separam aquele congresso do que realizamos agora, o CBDU não se
furtou a se posicionar diante dos momentos decisivos da história recente,
evidenciando os impasses, rupturas e disputas em torno do direito à cidade.
Em 2015, em Fortaleza, já sob os efeitos do avanço da austeridade fiscal, da
rearticulação neoliberal e da reorganização das direitas no segundo mandato de Dilma
Rousseff, discutiu-se a efetividade da ordem jurídico-urbanística diante dos conflitos
urbanos. Em 2017, em Florianópolis, após o golpe parlamentar de 2016, o Congresso
abordou os retrocessos nas políticas urbanas, o esvaziamento da participação social e
a adoção de reformas regressivas. Em 2019, em Palmas, o mote “a política urbana em
xeque” denunciou o desmonte institucional promovido pelo governo de extrema direita,
com destaque para a intensificação dos conflitos fundiários, os ataques à função social
da propriedade e a corrosão dos marcos legais da política urbana.
Por fim, o Congresso de 2022, realizado em Salvador, teve como tema “(Des)ordem
urbanística e emergências sanitárias, climáticas e sociais” e ocorreu em meio a um
cenário de colapso institucional e crise múltipla — política, econômica, social,
ambiental e sanitária. À época, o país enfrentava o aprofundamento da fome, da
violência e do trabalho análogo à escravidão, além de ataques à ciência, às
universidades, aos direitos sociais e aos territórios tradicionais, somados ao avanço da
devastação ambiental e da desinformação. No campo urbano, o contexto era marcado
pelo acirramento dos conflitos territoriais, pela extinção do Ministério das Cidades, pela
desregulamentação e esvaziamento das estruturas participativas e pela intensificação
da captura do direito urbanístico por interesses privados, em um verdadeiro apagão
das políticas públicas.
O cenário atual já não é o mesmo. Desde o último congresso, as redes de
solidariedade forjadas ou fortalecidas no contexto adverso floresceram e deram frutos.
As mobilizações em defesa das ZEIS, as campanhas contra a violência e despejos no
campo e na cidade e as conferências populares ajudaram a pavimentar o caminho
para a eleição de um governo progressista, reabrindo possibilidades de reconstrução
institucional. A recriação do Ministério das Cidades e do sistema nacional de
participação social, a retomada do Programa Minha Casa Minha Vida e o
reconhecimento das periferias, favelas e comunidades urbanas como sujeitos de
direitos — como expresso nas novas políticas do IBGE e na criação da Secretaria
Nacional de Periferias — são sinais importantes de mudança. Medidas voltadas à
promoção da igualdade racial, de gênero e aos direitos dos povos indígenas também
voltaram a integrar a agenda pública, indicando uma inflexão no tratamento do Estado
em relação ao reconhecimento de territórios vulnerabilizados e seus habitantes.
Ainda assim, do ponto de vista redistributivo, o cenário permanece adverso. A
austeridade fiscal e o estrangulamento orçamentário dos Estados em escala global
contribuíram para o esvaziamento da democracia como promessa de justiça social,
abrindo caminho para a ascensão de governos autoritários e de extrema direita. No
plano urbano nacional, os efeitos dessa lógica se expressam na limitação de recursos
para a efetivação dos direitos sociais, na centralidade das emendas parlamentares
como instrumento de alocação orçamentária e na ampliação da captura da política
urbana por interesses privados. A nova versão do Programa Minha Casa Minha Vida
fragiliza os instrumentos públicos de reurbanização e regularização fundiária,
reforçando a lógica da privatização da política habitacional. O Projeto de Lei 4188, ao
admitir a possibilidade de penhorar o bem de família, explicita o avanço da hegemonia
financeira sobre os marcos legais de proteção social. Já a Proposta de Emenda
Constitucional 03/2022, ao buscar legalizar a privatização das praias, simboliza a
disposição do Estado em renunciar à tutela sobre bens públicos em favor da
especulação imobiliária. A resultante é o avanço de uma política urbana regressiva,
cada vez mais submetida às dinâmicas do mercado.
Do ponto de vista da violência estrutural e da dívida histórica do Estado brasileiro com
as populações mais vulnerabilizadas, o cenário tampouco apresenta sinais de
superação. O racismo continua a se expressar nas práticas cotidianas, na violência
policial, nos assassinatos de lideranças campesinas, de quilombolas, de mães de
santo e de outros defensores de direitos territoriais e religiosos. A emergência de
iniciativas como a “campanha invasão zero” e o avanço de grupos milicianos e do
crime organizado — especialmente no Norte e Nordeste do país — reforçam a
presença armada nas periferias e aprofundam a lógica da intolerância e do controle
territorial. Os efeitos das mudanças climáticas, por sua vez, atingem com maior
intensidade os territórios racializados e periféricos, ampliando a desigualdade e
gerando contingentes de atingidos, deslocados e sem-teto, em um quadro de racismo
ambiental que demanda respostas concretas no campo da adaptação antirracista. A
expansão do agronegócio e do garimpo ilegal ameaça diretamente os povos indígenas
e quilombolas, ao mesmo tempo em que se busca consolidar marcos normativos
regressivos, como o marco temporal. Propostas como o PL 8262/2017, que tenta
criminalizar movimentos sociais por meio da alteração de dispositivos do Código Civil,
do Código Penal e do CPC - assim como o crescimento da perseguição à nível global
das organizações da sociedade civil e o desmonte dos instrumentos de cooperação
internacional - completam um quadro que não apenas inviabiliza a construção de um
projeto de reparação, como também ameaça os poucos avanços democráticos
acumulados nas últimas décadas. O cenário internacional é marcado pela ebulição
política, pela ascensão de governos populistas de extrema direita, pela emergência de
novas articulações no Sul Global e por um reposicionamento geopolítico com a
consolidação do Oriente como potência mundial.
Nesse contexto de disputas acirradas, convocamos o congresso como espaço de
formulação crítica e ação estratégica, diante dos impasses urbanos e da urgência de
uma justiça socioterritorial. Realizado às vésperas da COP30 e da 6ª Conferência
Nacional das Cidades, o XII Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico ocorre em um
momento decisivo para o futuro das cidades. Tem sido uma longa jornada desde o
nosso primeiro congresso, realizado pouco após a aprovação do Estatuto da Cidade e
a promessa de consolidação de uma ordem jurídico-urbanística, até chegarmos ao
congresso atual. Passamos pela esperança de justiça urbana, pela constatação do
desmonte institucional e resistimos à tentativa de implementação de uma verdadeira
(des)ordem urbanística. Em um contexto em que propostas de ruptura institucional e
discursos autoritários ainda buscam legitimidade, reafirmamos a importância da
memória, da verdade e da justiça para nossas cidades. Uma justiça socioterritorial que
combine, de forma indissociável, redistribuição, reparação e reconhecimento. Porque
redistribuição sem reconhecimento é cega à complexidade das desigualdades que
estruturam a sociedade brasileira; reconhecimento sem redistribuição promove uma
inclusão subordinada à lógica do mercado, esvaziada de qualquer potência
transformadora; e uma reparação genuína só pode ser construída a partir da
articulação concreta entre ambas.
Convidamos pesquisadoras, pesquisadores, estudantes, profissionais, gestores
públicos e ativistas a contribuírem com mais esta edição desse espaço coletivo de
debate e proposição. Em um cenário de impasse e emparedamento dos horizontes
para as cidades, o Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico reafirma sua vocação
como espaço de construção crítica e elaboração coletiva de alternativas
comprometidas com o direito à cidade. Num país mais urbano do que nunca — feito
de favelas, grotas, baixadas, palafitas, vilas, ocupações e tantos outros territórios
populares — reafirmamos o compromisso com a construção de cidades justas.
Sempre estivemos, ainda estamos e continuaremos aqui — defendendo as conquistas
daqueles que vieram antes de nós, reinventando caminhos para os que virão depois e
abrindo novas possibilidades de futuro.